quinta-feira, 25 de outubro de 2012


BRASILEIRO POR OPÇÃO-XX

           José Augusto de Castro e Costa

Entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1903 chovera incessantemente em Puerto Alonso e suas adjacências.

A noite do sétimo dia de combate chegara triste e úmida, povoada de pressentimentos, de inumeráveis enigmas e estranhas incertezas que rondavam  sobretudo os bolivianos. Bem espaçadamente fazia-se ouvir algum tiro brasileiro sacudindo o  cochilo boliviano e alertando as sentinelas quase imobilizadas, pelo vento  cortante vindo da mata.

Por volta de meia-noite, após uma estiada de pouquíssimas horas, a escuridão começara a ser clareada por frequentes relâmpagos e a expectativa sobressaltada por rimbombantes trovões, prenunciando o temporal que se esboçaria na ventania desenfreada.

Os acreanos passaram a lançar sobre o acampamento boliviano flechas  com estopas ensopadas de querosene que, iluminando o espaço, iam levar uma variedade de incêndios  à resistência inimiga.

Os tiros, espaçados antes da chuva, passaram a cruzar-se por todos os lados, fazendo-se troar o canhão, intermitentemente, madrugada adentro, para, quase ao alvorecer, cessar a tempestade instantaneamente, extinguindo-se também o tiroteio, sob o manto silencioso da neblina.

O ruído que apresentara-se  era o dos coveiros cavando valas, num bater de pás e picaretas, para enterrar seus companheiros mortos, ao amanhecer brumoso do dia 23 de janeiro de 1903.

Aos poucos uma luminosidade azulada ia translucidando o céu sobre Porto Acre,em busca de uma limpidez anilada, quando os brasileiros divisaram o branco de uma bandeira  subindo trêmula no mastro fixado no alto da Delegação Nacional da Bolívia, na margem oposta.

Plácido de Castro ordenara o cessar fogo e, ao lado dos companheiros, procurara entender o que lhes acenavam, do outro lado do rio, aos brados, os bolivianos. As palavras curtas e incisivas, não chegaram a ser entendias com clareza porém,  em vista da movimentação de dois estrangeiros numa canoa,  procurando atravessar  empunhando uma bandeira branca, o Caudilho deduzira tratar-se de uma rendição honrosa.

Era  engano, pois a autoridade boliviana viera aos brasileiros com a simulada intenção de pedir trégua para enterrarem  seus mortos, que somavam grande quantidade, segundo informações.

O comandante acreano, todavia, pressentira o pretexto e, ao suspeitar de algo além da justificativa, respondera ao boliviano que, no momento, estavam discutindo a sorte dos vivos. Mais tarde tratariam dos mortos, porque eles não ficariam insepultos, por muito tempo.

A suspeita do Caudilho, em verdade, teria fundamento, de vez que seu comando de guerra situara-se em um alvo bem acessível às balas inimigas, apesar de sua tropa manter-se oculta, cercada por um sem-número de bananeiras que serviam de tapumes.

Plácido, porém, percebera que o boliviano interlocutor, no momento em que ali estivera, aproveitara para examinar atentamente o local e pousara o olhar insistentemente  nas trincheiras acreanas. Em assim sendo, melhor seria dali retirar seu acampamento para outro local mais seguro, o que fizera sem pestanejar.

Reiniciado o tiroteio, de maneira tão intensa quanto no primeiro dia, os brasileiros observaram  que a zona mais varrida a bala fora justamente  a das bananeiras, onde estavam  entrincheirados antes. O pipocar ensurdecedor dos tiros prolongara-se por todo o dia, propagando-se pela noite adentro, sem interrupção.

As tropas de Plácido lançaram-se a conquistar o terreno por todos os flancos, chegando a cerca de cinquenta metros do inimigo, prestes a partir para o corpo a corpo e sair no tapa, quando a “peixeira” certamente  entraria em ação. E boliviano não é muito chegado a faca, da qual foge, como o diabo foge da cruz.

Ao amanhecer o dia 24 de janeiro de 1903, novamente os bolivianos hastearam a bandeira branca e pediram momentâneo descanso.

Trégua consentida, aproximara-se outra vez Dom Moysés Santivañez, desta vez, em nome do delegado do governo boliviano, para propor a capitulação, ao que Plácido respondeu  que somente aceitaria sob primordial condição: a retirada imediata total dos  bolivianos de toda a região acreana.

Instantes depois viera ao acampamento brasileiro Dom Lino Romero, delegado boliviano, que declarara aceitar, indiscutivelmente, qualquer condição proposta pelo Caudilho e oferecendo-se para assinar a Ata de Capitulação no local que os revolucionários indicassem, tendo sido escolhida a trincheira principal de Puerto Alonso.

Após transmitir as ordens de alerta aos seus comandados, Plácido, levando consigo apenas o corneteiro, acompanhou Dom Lino Romero de volta até às trincheiras bolivianas, onde fora apresentado aos oficiais superiores, quando destacara-se a espirituosa concepção do coronel Ruiz:”-Pero usted és mui joven”! O Caudilho, então, que há um mês completara 29 anos, respondera, com urbanidade, que “é a idade mais adequada às aventuras da guerra”.

O próprio Plácido lavrara a Ata de Capitulação em português, enquanto Dom Moysés Santivañez providenciara a respectiva versão para o espanhol e a passara ao delegado boliviano e demais  superiores hierárquicos, para as devidas assinaturas.

Mais tarde, formada toda a força boliviana ante ao exército acreano, procedera-se a entrega das armas, a começar pelos oficiais superiores, tendo Plácido de Castro salientado que “o ideal era a emancipação do Acre e que a cerimônia da entrega da espada do vencido, conquanto fosse um ato muito apetecido pelos grandes exércitos, não o confortara o coração, por ser um ato que aumentaria o infortúnio daqueles já infortunados pela derrota”.

Ao cair da noite de 24 de janeiro de 1903, o navio “Independência”, já descarregado das borrachas, depois  transformadas em balsas, amarradas umas às outras, como de costume,  tinha a bordo  todos os bolivianos prisioneiros, que seriam levados sob a escolta dos brasileiros até a cidade de Manaus.

A 26 de janeiro, Plácido de Castro, após ser aclamado governador do Acre pelo Dr. Baptista de Moraes, em nome de todos os oficiais combatentes da revolução e dos civis presentes, passara a organizar o governo com três ministérios, dos quais, dois – o da Guerra e o da Justiça – seriam acumulados pelo próprio governante e o da Fazenda, pelo coronel Rodrigo de Carvalho, que já possuía prática de assuntos aduaneiros.

 Através do primeiro decreto fora adotada a língua portuguesa, como o idioma oficial do Estado do Acre, e reconhecidas as propriedades e posses de terras ocupadas.

 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012


BRASILEIRO POR OPÇÃO-XIX

              José Augusto de Castro e Costa

 

Nos primeiros dias de janeiro de 1903 as forças revolucionárias  aguardavam ordens de Plácido de Castro, simultaneamente,  nos seringais  Caquetá, São Jerônimo e Bom Destino, prontas para o ataque a Puerto  Alonso.

 O que o Caudilho  preparara era um exército regularmente eficiente para a ação que iria desenvolver, tropa essa mobilizada pelos proprietários dos seringais. Ademais, os acreanos achavam-se bem mais mobilizados, tanto por terra quanto por água, em vista da cheia dos rios, que inundavam tudo,  graças às chuvas constantes da época.

O navio “Afuá”, que antes, sequestrado, houvera servido de abrigo aos bolivianos, após o segundo combate passara a pertencer novamente aos brasileiros, com o  sugestivo nome  de “Independência”.

No porto de “Caquetá” Plácido de Castro fizera alguns contatos com comandantes de navios e dera início ao sítio de “Porto Acre”, mandando abrir um varadouro contornando o terreno  onde se deveria acontecer o combate e ensejando saídas para outras direções.

No dia 13 de janeiro, Plácido oficializara ao Delegado boliviano, comunicando o início da batalha para o dia seguinte, às 10 horas da manhã, aproveitando para oferecer-lhe hospital para transfusão de sangue, a fim de nele também serem recolhidos e tratados os feridos, o que fora recusado, em linguagem considerada descortês.

Às 23 horas, Plácido suspendera  a ordem do ataque que estava marcado,  porém no dia seguinte, às 14 horas, distribuíra, pessoalmente as forças nas posições que deveriam ocupar, a fim de partirem para o combate.

A partir dessas providências, uma rajada de vibração patriótica sacudira o Acre inteiro, de brasileiros a bolivianos, invadidos pela angústia de ver chegar, o mais rápido possível, o momento real de jogarem o seu destino.

Plácido de Castro acampara um pouco acima de Porto Acre, com o batalhão “Independência”, quando apresentara-se  ao seu comando o engenheiro, seu conterrâneo, Gentil Norberto, oferecendo-se ao combate, disposto a cumprir todas as ordens que lhe desse, sendo aceito e colocado como um dos  ajudantes de ordem do Caudilho.

Segundo Plácido, às 9 horas do dia 15 de janeiro os acreanos romperam as hostilidades e às 14 horas já ocupavam posições em campo aberto, há cerca de 120 metros das trincheiras bolivianas.

De suas posições bem resguardadas nas eminências do terreno, os bolivianos responderam com firmeza o tiroteio, ”dirigindo o fogo para alinha de baixo e para a margem  direita”, porém, de súbito, Puerto Alonso recebera  um bombardeio do “Independência”, que acabara de estender linha de artilharia pela parte de cima do rio Acre.

Desencadeara-se a refrega com tal impulso, que rapidamente as tropas acreanas aproximaram-se cada vez mais do inimigo. Porém, uma repentina contra-ofensiva afastara  e recuara, forçosamente, os revolucionários, que se abrigaram na escuridão.

As perdas acreanas somaram, entre mortos e feridos, a cinquenta soldados, contudo, durante a noite, foram tamanhos os esforços e as providencias tomadas para o sepultamento dos mortos, acolhimento dos feridos e abastecimento às linhas, que, ao amanhecer do dia 16 de janeiro, todas as forças viram-se entrincheiradas e abastecidas  de víveres e água acondicionada em sacos impermeáveis, improvisados de cauchos de árvores, prontas para novo combate.

Fizera-se necessário que o navio “Independência”, carregado de borracha, descesse o rio para, em Manaus, trocar o carregamento por armamentos e munições, a fim de  manter  a resistência da revolução.  Plácido encarregara o coronel Antunes de Alencar de forçar a passagem do navio, quando recebera uma dupla surpresa: o comandante Alencar simulara estar, instantaneamente, acometido de grave crise hepática, desculpando-se e pedindo-lhe urgente dispensa do comando, e, logo a seguir, fora o Caudilho informado de que os bolivianos haviam colocado uma grossa  corrente, de uma margem a outra do rio, para impedir a passagem do gaiola.  

Plácido, então, dispusera outros comandos para as forças em terra e fora para bordo do “Independência”, a fim de comandar e compelir a necessária passagem, levando consigo uma força de artilharia de 50 homens, dispondo-a 25 em um bordo e 25 no outro, comandados por dois subalternos. Consumira-se não menos que três dias para romper a corrente que impedira a passagem do vapor, culminando com a perda, intercalada de um em um, de cerca de dez soldados voluntários, na operação submersa, debaixo da fuzilaria inimiga. A bordo do gaiola essas forças ficaram bem entrincheiradas, assim como o próprio Plácido e seu ajudante-de-ordens, capitão Antonio de Souza Coelho, que se posicionaram no meio da praça de armas, no momento da passagem.  O Caudilho desdobrara-se em múltiplas atividades, ajudando a arrumar, distribuindo a munição, ministrando advertências de ordem técnica e ainda pilotando o timão do barco.

Às seis horas da manhã do dia 19 de janeiro, Plácido de Castro ordenara que se suspendesse  âncora e avançasse o gaiola, envolto na densa bruma, num ambiente de franco nervosismo.

Súbito, silvara dentro da neblina da atmosfera acreana, o apito prolongado do “Independência”, desencadeando, simultaneamente, como que ensaiado, um violento indescritível tiroteio vindo de todos os quadrantes,  mas que não impedira a passagem, feita garbosamente pelos revolucionários brasileiros. Eram, sim, uns verdadeiros “cabras da peste”.

 Plácido de Castro, observara de seu comando e, em seus apontamentos registrara como sendo “belo o aspecto apresentado pelas linhas sitiantes e sitiadas, formando duas curvas concêntricas de fumo”.

Os vivas entusiastas irromperam por todas as linhas acreanas com o luminoso rufar da artilharia ao clarear da manhã. Os atiradores de bordo tanto atiravam como soltavam gritos de cego entusiasmo e contagiante comoção.

Passado o perigo e quando o “Independência” encontrara-se em local seguro, foram as forças acreanas reparar as avarias, quando de súbito, desabara uma chuva torrencial.

O aguaceiro, por ser muito forte, começara a encharcar as trincheiras e, por extensão, os próprios abrigos dos bolivianos, cujas paredes e tetos foram perfurados pelas balas brasileiras.

Começara a ser notado o desespero no acampamento boliviano, à medida que o dia avançava, refletindo na desorientação percebida pelos sussurros de vozes que entremeavam no ruído do trabalho nas trincheiras e nos sepultamentos dos mortos, indicando a proximidade dos combatentes.

Todavia, ainda que contínuo, os disparos da artilharia boliviana passaram a ser menos cerrados, em ritmo modificado, com intervalos estimados de cinco em cinco minutos, de modo tendente a descontínuo, porém, sempre brutal.

De vez em quando um aguaceiro violentamente caudaloso abatia-se sobre o campo de batalha.

Plácido selecionara uma turma para fazer o abastecimento d’água, conduzindo-a do rio nos sacos encauchados, servido pelos cauchos das árvores, que todo seringueiro usava, impermeáveis, onde, antes, comumente guardavam roupa, rede e mosquiteiro.

O Caudilho sempre expusera aos revolucionários os perigos da aventura, ocasião em que a morte poderia alcançá-los, porém, constantemente lembrara-lhes de que a vitória só dependeria deles. Todos comungaram com ele.

Ninguém recuara, ninguém caíra, ninguém temera. E, sob a fuzilaria boliviana os acreanos estiveram sempre prontos para partir em demanda do rio, para a morte talvez.

 Para ser brasileiro, por opção.